sexta-feira, 8 de outubro de 2010
Pierre Fatumbi Verger Mensageiro entre dois mundos
A imagem é uma linguagem que alcançou espaço no meio acadêmico e hoje não está mais separada do saber científico. A antropologia neste novo contexto de subjetividade na qual a sociedade deve ser concebida como uma linguagem vem ampliando seus horizontes metodológicos e incorporando a fotografia não apenas como um recurso, mas como um meio de expressão do comportamento cultural:
“Considerar a imagem com uma linguagem visual composta de diversos tipos de signos equivale, a considerá-la como uma linguagem e, portanto, como uma ferramenta de expressão e de comunicação. Seja ela expressiva ou comunicativa, é possível admitir que uma imagem sempre constitui uma mensagem para o outro, mesmo quando o outro somos nós mesmos. Por isso, uma das precauções necessárias para compreender da melhor forma possível uma mensagem visual é buscar para quem ela foi produzida.”(JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. 6ª ed.)
A antropologia visual é a interação das linguagens textual e visual e esta interação pode contribuir muito para o entendimento dos significados culturais tornando as pesquisas etnográficas mais completas, já que, quando se é difícil descrever situações a imagem fala e quando as estruturas e relações estão em jogo, o texto se faz presente.
Encontrar o equilíbrio entre as técnicas de repente seja o complexo na nova antropologia, mas quando alguém consegue fica claro que não é impossível de fazê-lo.
Pierre Verger talvez seja o fotógrafo/etnógrafo que alcançou isto quando ainda a discussão de validade acadêmica da fotografia estava acontecendo.
O filme Pierre Fatumbi Verger: Mensageiro entre dois mundos, sobre a vida e a obra do francês que se tornou baiano fundamental , foi narrado e apresentado por Gilberto Gil que encarna o papel de refazer os caminhos percorridos por Verger, nos três continentes: África, Europa e América; mostrando sua vida e pesquisa que se misturam aos olhos de quem começa estudá-lo.
O enredo do filme é intenso entre os mundos baiano e africano, o tempo todo somos embalados por atabaques tocados com força e vigor, o contraste sempre muito presente reforça o olhar que Verger tinha, misturado às cores e línguas que faz do mistério e do segredo personagens que estão ali, na Bahia, na África, em Verger, no filme.
Pierre Verger vê no ano de 1932 um marco, após a morte da mãe, torna-se um fotógrafo viajante. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos e podia fazer contatos para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas em suas imagens observamos sempre o olhar atento que registrava os costumes e hábitos de negros por todo mundo. Na sua viagem à África Ocidental (1935-1936), Verger conhece a cultura iorubá e somente em 1946 chega a Salvador onde aguçou seu interesse pelas raízes dos costumes locais e a relação entre a cidade brasileira e o outro lado do Atlântico, iniciando uma pesquisa sobre a cultura e a religião africanas: cultos aos orixás, a botânica usada nos rituais, o comércio de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos foram alguns de seus temas, Verger, como ele mesmo diz na entrevista incluída no filme, fixou-se na Bahia em "razão do charme de Salvador", onde inicialmente não "ousava" fotografar nenhuma pessoa de pele clara. Nessa pesquisa ele passa 20 anos entre os dois continentes, protegido por uma entidade; torna-se filho de Mãe Senhora, realizando um trabalho academicamente reconhecido, recebia uma bolsa de estudos e pesquisas do Institut Français d’Afrique Noire (Ifan) e como resultado apresenta a etnografia Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, dos século XVII a XIX, um trabalho que mostra a forte relação de brasileiros em Benin e africanos em Salvador. A realização dessa obra se deu de uma maneira mais que participativa, Verger foi primeiramente iniciado no candomblé, é nomeado babalaô (pai do segredo,uma espécie de adivinho), se torna Fatumbi depois de batizado no Ifá (jogo de adivinhação que deu origem ao que é conhecido como jogo de búzios no Brasil) . Pierre Fatumbi Verger era integrante, participante e religioso, ganhou confiança, entrou no mundo de segredos e mistérios que pesquisava. Ele próprio dizia-se racionalista, que não acreditava e não se considerava pesquisador já que não possuía seriedade e vontade de perguntar tal como um pesquisador faz, naquele momento ele estava criando um estilo próprio de fazer etnografia, de pesquisar e fazer ciência. Em 1966 recebeu o titulo de doutor pela Academia na Universidade Sorbonne sem mesmo ter uma formação acadêmica, mas uma formação de conhecimento da realidade.
O diretor Lula Buarque de Hollanda nos leva em uma viagem na vida de Verger e na história e conhecimento africanos. Em alguns momentos do filme os detalhes são tantos que parece que Verger está no segundo plano, a voz dada aos africanos entrevistados é constante, as imagens mostram as ricas heranças africanas no Brasil, quadros interessantes são apresentados com movimento e depois a fotografia de Verger, a combinação funciona muito bem. Quando não estamos sendo invadidos por uma cultura negra com modos de organização, religião e costumes muito particulares com uma lógica muito elaborada, estamos assistindo rituais onde a beleza dos detalhes, das cores, contrastes, composições se revelam em instantes. As entrevistas das pessoas envolvidas com o candomblé e com Verger e os depoimentos de pesquisadores, fotógrafos e amigos como Jean Rouche, Jorge Amado, Zélia Gattai, Mãe Stella, Pai Agenor, Cid Teixeira e Milton Geran, são mesclados com textos de Verger narrados por Gil.
Gilberto Gil empresta ao filme um pouco de si, de sua crença, fé e emoção. Parece ter se identificado muito com o papel que lhe é incumbido: refazer o caminho de Verger por Paris, Benin e Bahia, através das pesquisas de Lula Buarque e Marcos Bernstein. A entrevista que Verger concedeu a Gil é interessante em vários aspectos, nela o fotógrafo fala do seu racionalismo e surpreende quando fala que não existe incorporação e sim o extravasamento daquilo que a pessoa é (e/ou que a crença e o social permitem que ela seja - uma analise, digamos, estruturalista). Outro dado interessante é quando afirma que não se considera um pesquisador, pois não pergunta “o que é” ou “o que significa isso”? Parece que Verger ao contrário busca conhecer, no sentido de ter uma experiência individual e subjetiva, para então fazer análises e abstrações. No entanto o que mais chama a atenção é o que ocorre depois da entrevista, Pierre Verger morre no dia seguinte. Agora não é a vida e obra de Verger que está virando filme, sua morte também é registrada, é capturada pelas lentes e sentida pelo narrador (Gil). Mas uma vez, o mistério se faz presente no filme, quando acontece algo que não pode ser nomeado de mera coincidência de fatos. O final do filme é o final da vida do seu protagonista: Pierre Fatumbi Verger.
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