Hoje, com a grande e rápida expansão do candomblé, o axexê parece estar em franca desvantagem com relação às demais cerimônias. Sobretudo em São Paulo, onde o candomblé não completou sequer cinqüenta anos, poucos terreiros dispõem de sacerdotes e sacerdotisas capazes de cantar e conduzir o rito fúnebre, obrigando a comunidade, em caso de morte, a se valer dos serviços religiosos de pessoa estranha ao terreiro, que costuma cobrar e cobrar muito caro pelo serviço.
Vários adeptos do candomblé, que se profissionalizam como sacerdotes remunerados, especializam-se em axexê. São então chamados para a cerimônia quando um terreiro necessita de seus préstimos. Isto, evidentemente, encarece muito a cerimônia, o que acaba por inviabilizá-la na maioria dos casos.
Mesmo quando morre um sacerdote dirigente de terreiro, há grande dificuldade para a realização dos ritos funerários, sobretudo naquelas situações em que a morte do chefe leva ao fechamento da casa, provocada tanto por disputas sucessórias, como por apropriação da herança material do terreiro pela família civil do falecido. Vale lembrar que se pode contar nos dedos os terreiros que, por todo o Brasil, sobreviveram a seus fundadores.
Em geral, a família do finado não tem qualquer interesse em realizar o axexê e nem está disposta a gastar dinheiro com isso. Por outro lado, pouquíssimos pais e mães-de-santo, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, se dispõe a realizar qualquer tipo de cerimônia sem o pagamento por parte do interessado, mesmo quando o interessado é membro de seu próprio terreiro. Muitos pais e mães-de-santo mantêm terreiros especialmente como meio de vida, de modo que as regras do mercado suplantam em importância e sentido as motivações da vida comunitária.
Ao que parece, o empenho das comunidades de culto na realização dos ritos funerários, na maioria dos casos, é muito reduzido quando comparado com o interesse, esforço e empenho despendidos nos atos de iniciação e feitura, como se, com a morte, pouca coisa mais importasse. Cria-se assim uma situação em que a preocupação em completar o ciclo iniciático vai perdendo importância, alterando-se profundamente, em termos litúrgicos e filosóficos, a concepção da morte e, por conseguinte, a própria concepção da vida.
Os conceitos originais africanos de vida e morte vão se apagando e o candomblé vai cada vez mais adotando idéias mais próximas do catolicismo, do kardecismo e da umbanda, criando-se, provavelmente, uma nova religião, que hoje já se esparrama pela cidades brasileiras a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, e que muitos chamam, até pejorativamente, de umbandomblé, em que os eguns, que são na concepção iorubá ancestrais particulares de uma específica comunidade, vão perdendo suas características africanas para se transformar em entidades genéricas, não ligadas a nenhuma comunidade de culto em particular, que baixam nos terreiros para "trabalhar", assumindo a justificativa da caridade, ideal e prática cristã-kardecistas que aos poucos vão suplantando os modelos africanos de ancestralidade e seus ideais de culto à origem e valorização das linhagens.
Esta nova maneira de pensar a morte e vida por grande parte dos adeptos do candomblé, sobretudo os de adesão mais recente, constitui forte razão para a crescente perda de interesse na realização do axexê para todos os iniciados. Com isso, certamente, ganham terreno as concepções e ideais da umbanda e perdem as do candomblé.
Isto é o contrário do movimento de africanização e já há muito se constituiu num processo oposto, o da umbandização do candomblé. Sem axexê, a feitura de orixá não faz sentido, pelo menos nos termos das tradições africanas que deram origem à religião dos orixás no Brasil. O ciclo simplesmente não se fecha e a repetição mítica, tão fundamental no conceito de vida segundo o pensamento africano, não pode se realizar.
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TEXTO
Conceitos de vida e morte no ritual do axexê:
Tradição e tendências recentes dos ritos funerários no candomblé.
por Reginaldo Prandi
Prof. Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo
http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/
Referências bibliográficas
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BRAGA, Júlio. Ancestralidade afro-brasileira: o culto de babá egum. Salvador, CEAO e Ianamá, 1992.
LAWAL, Babatunde. The Gèlèdé Spectacle: Art, Gender, and Social Harmony in an African Culture. Seatle, University of Washington Press, 1996.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo, Hucitec e Edusp, 1991.
____. Herdeiras do axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo, Hucitec, 1996.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nàgó e a morte. Petrópolis, Vozes, 1976.
SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu tempo é agora. São Paulo, Odudwa, 1993.
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