“Saída de nação”: O nascimento pela fotografia e pelas viagens
Em 1932, numa de suas primeiras viagens, feita a pé por mil e quinhentos quilômetros da Córsega,
Verger aprende fotografia com seu amigo Pierre Boucher. A máquina fotográfica, uma Rolleiflex usada,
conseguida em troca de alguns objetos da família, seduziu-o pela possibilidade de registrar contrastes,
tonalidades e formas com nitidez impressionante. “Tinha-me seduzido pela extraordinária nitidez dos detalhes que sobressaíam nas fotos tiradas de tão curta distância e me permitiam valorizar o contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de uma onda vindo morrer na areia granulada de uma praia, as gotas de orvalho sobre um talo de erva, um canto de calçada asfaltada, alguns paralelepípedos e um bueiro, e – oh! triunfo! – um lagarto engolindo uma mosca” (Verger, 1982a: 13).
A sedução pelo detalhe e a opção pelo close como enquadramento, método que chamaria
posteriormente de “míope”, já revelavam seu desejo de distanciar-se de um olhar convencional e
tecnicamente “correto”. A escolha de objetos “não usuais” (como as formas da água, das pedras,
composições de texturas, a convivência e o equilíbrio de elementos de naturezas diferentes etc.) seria o
primeiro indício da valorização da parte sem a qual o todo não se constitui. Num segundo momento, quando
suas viagens o levam a conhecer as diferentes e exuberantes formas que a humanidade assumia nos locais
que visitava, sua sensibilidade para o diferente, o excluído, o recessivo, o singular, parece encontrar com
estes uma perfeita comunhão. A percepção do valor individual que não se perde no coletivo confirma-se na viagem realizada com um grupo de turistas para a URSS, em 1932. Essa viagem foi motivada pelo desejo de opor-se de modoradical ao mundo burguês em que fora criado. Percebe, entretanto, que as virtudes estão nos homens e não
nas ideologias, e que a cega oposição ao meio ainda o tornava um refém do mesmo. Sua personalidade
desapegada e individualista o leva a distanciar-se das questões políticas que na Europa ganhavam contornos
maniqueístas pelo alinhamento quase obrigatório entre posições de esquerda ou direita.
De volta a Paris, embarca em direção ao Taiti no cargueiro Ville de Verdun, como passageiro de
quarta classe. A escolha dessa ilha paradisíaca e, mais tarde, de outros lugares tidos como “exóticos”, é
permeada pela influência da literatura, do cinema e da pintura sobre sua imaginação. Telas de Gauguin,
novelas de Chadourne e Stendhal, filmes de Flaherty e Marnau compõem o cenário de aventura e liberdade
em busca do qual ele atravessaria os mares, conhecendo os cincos continentes.
Em 1934, de volta a Paris, entra em contato com Georges Henri Rivière, subdiretor do Museu de
Etnografia de Trocadero (atual Museu do Homem) tencionando fotografar alguns objetos da coleção deste
Museu para a edição de um livro sobre sua viagem. Por coincidência, Rivière estava organizando uma
exposição sobre a Oceania, na qual as fotos de Verger foram incluídas. Verger torna-se fotógrafo do Museu e passa a conviver com importantes etnógrafos como Marcel Griaule, Michel Leiris, Germaine Dieterlen e Alfred Métraux. Com Métraux estabeleceu uma sólida amizade; considerava-o seu “quase gêmeo”, por terem ambos nascido no em 4 de novembro. Nesse período, torna-se membro da equipe de fotógrafos do Paris-Soir que é enviada para os Estados Unidos, Japão, China e Filipinas. O trabalho como fotógrafo empregado não o satisfaz inteiramente.
Continua, entretanto, a fazer reportagens fotográficas para esse e outros periódicos com os quais
estabeleceria contatos ao longo das viagens. No tempo livre viaja de bicicleta pelo sul da França, Espanha e
Itália, sempre com sua Rolleiflex a tiracolo e pela simples ”alegria de pedalar, sob um céu azul, longe das
brumas invernais de Paris” (Verger, 1982a: 67). Viajar sozinho, de bicicleta, fotografando cenas incomuns
criava, também, alguns contratempos. Na Espanha, por exemplo, onde a revolução era iminente, ao
fotografar um muro com palavras de ordem contra o fascismo foi preso por policiais que o julgaram alemão,
por seu sotaque. Ficou dois dias na prisão, tendo sido solto por intercessão do cônsul da França, avisado
pelos amigos que Verger fez na cadeia e que saíram antes dele. Já livre, passou a se encontrar com esses
amigos, que haviam sido presos por jogatina, em bares onde bebiam e cantavam em barulhentas reuniões
noturnas que, segundo ele, por pouco não os fizeram voltar à prisão.
Em 1935, de volta a Paris, conhece, por acaso, num restaurante, o cunhado do editor Paul Hartmann
que, coincidentemente, procurava imagens da Andaluzia para um álbum sobre a Espanha, de onde Verger
acabara de chegar com muitas fotos. Este álbum, En Espagne, de 1935, foi a primeira obra editada com
fotos de Verger.
No mesmo ano, outra coincidência acontece. No restaurante Chéramy, durante um jantar com
amigos, Verger é convidado a conhecer o Sudão em troca de fotos para propaganda daquela colônia
francesa. Por iniciativa própria, e utilizando a estratégia de trocar transporte por fotografias, estende a
viagem ao Togo, Benin (ex-Daomé) e Níger. Nestas regiões, viajando de camelo e outros meios, fotografa
tuaregues e outros povos islamizados, a arte ritual das “máscaras bambara de cobre cintilante sob o sol”, a
dança dos Dogons, “tão caras a Marcel Griaule e Germaine Dieterlen” e as “cerimônias de culto aos gênios
Verger aprende fotografia com seu amigo Pierre Boucher. A máquina fotográfica, uma Rolleiflex usada,
conseguida em troca de alguns objetos da família, seduziu-o pela possibilidade de registrar contrastes,
tonalidades e formas com nitidez impressionante. “Tinha-me seduzido pela extraordinária nitidez dos detalhes que sobressaíam nas fotos tiradas de tão curta distância e me permitiam valorizar o contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de uma onda vindo morrer na areia granulada de uma praia, as gotas de orvalho sobre um talo de erva, um canto de calçada asfaltada, alguns paralelepípedos e um bueiro, e – oh! triunfo! – um lagarto engolindo uma mosca” (Verger, 1982a: 13).
A sedução pelo detalhe e a opção pelo close como enquadramento, método que chamaria
posteriormente de “míope”, já revelavam seu desejo de distanciar-se de um olhar convencional e
tecnicamente “correto”. A escolha de objetos “não usuais” (como as formas da água, das pedras,
composições de texturas, a convivência e o equilíbrio de elementos de naturezas diferentes etc.) seria o
primeiro indício da valorização da parte sem a qual o todo não se constitui. Num segundo momento, quando
suas viagens o levam a conhecer as diferentes e exuberantes formas que a humanidade assumia nos locais
que visitava, sua sensibilidade para o diferente, o excluído, o recessivo, o singular, parece encontrar com
estes uma perfeita comunhão. A percepção do valor individual que não se perde no coletivo confirma-se na viagem realizada com um grupo de turistas para a URSS, em 1932. Essa viagem foi motivada pelo desejo de opor-se de modoradical ao mundo burguês em que fora criado. Percebe, entretanto, que as virtudes estão nos homens e não
nas ideologias, e que a cega oposição ao meio ainda o tornava um refém do mesmo. Sua personalidade
desapegada e individualista o leva a distanciar-se das questões políticas que na Europa ganhavam contornos
maniqueístas pelo alinhamento quase obrigatório entre posições de esquerda ou direita.
De volta a Paris, embarca em direção ao Taiti no cargueiro Ville de Verdun, como passageiro de
quarta classe. A escolha dessa ilha paradisíaca e, mais tarde, de outros lugares tidos como “exóticos”, é
permeada pela influência da literatura, do cinema e da pintura sobre sua imaginação. Telas de Gauguin,
novelas de Chadourne e Stendhal, filmes de Flaherty e Marnau compõem o cenário de aventura e liberdade
em busca do qual ele atravessaria os mares, conhecendo os cincos continentes.
Em 1934, de volta a Paris, entra em contato com Georges Henri Rivière, subdiretor do Museu de
Etnografia de Trocadero (atual Museu do Homem) tencionando fotografar alguns objetos da coleção deste
Museu para a edição de um livro sobre sua viagem. Por coincidência, Rivière estava organizando uma
exposição sobre a Oceania, na qual as fotos de Verger foram incluídas. Verger torna-se fotógrafo do Museu e passa a conviver com importantes etnógrafos como Marcel Griaule, Michel Leiris, Germaine Dieterlen e Alfred Métraux. Com Métraux estabeleceu uma sólida amizade; considerava-o seu “quase gêmeo”, por terem ambos nascido no em 4 de novembro. Nesse período, torna-se membro da equipe de fotógrafos do Paris-Soir que é enviada para os Estados Unidos, Japão, China e Filipinas. O trabalho como fotógrafo empregado não o satisfaz inteiramente.
Continua, entretanto, a fazer reportagens fotográficas para esse e outros periódicos com os quais
estabeleceria contatos ao longo das viagens. No tempo livre viaja de bicicleta pelo sul da França, Espanha e
Itália, sempre com sua Rolleiflex a tiracolo e pela simples ”alegria de pedalar, sob um céu azul, longe das
brumas invernais de Paris” (Verger, 1982a: 67). Viajar sozinho, de bicicleta, fotografando cenas incomuns
criava, também, alguns contratempos. Na Espanha, por exemplo, onde a revolução era iminente, ao
fotografar um muro com palavras de ordem contra o fascismo foi preso por policiais que o julgaram alemão,
por seu sotaque. Ficou dois dias na prisão, tendo sido solto por intercessão do cônsul da França, avisado
pelos amigos que Verger fez na cadeia e que saíram antes dele. Já livre, passou a se encontrar com esses
amigos, que haviam sido presos por jogatina, em bares onde bebiam e cantavam em barulhentas reuniões
noturnas que, segundo ele, por pouco não os fizeram voltar à prisão.
Em 1935, de volta a Paris, conhece, por acaso, num restaurante, o cunhado do editor Paul Hartmann
que, coincidentemente, procurava imagens da Andaluzia para um álbum sobre a Espanha, de onde Verger
acabara de chegar com muitas fotos. Este álbum, En Espagne, de 1935, foi a primeira obra editada com
fotos de Verger.
No mesmo ano, outra coincidência acontece. No restaurante Chéramy, durante um jantar com
amigos, Verger é convidado a conhecer o Sudão em troca de fotos para propaganda daquela colônia
francesa. Por iniciativa própria, e utilizando a estratégia de trocar transporte por fotografias, estende a
viagem ao Togo, Benin (ex-Daomé) e Níger. Nestas regiões, viajando de camelo e outros meios, fotografa
tuaregues e outros povos islamizados, a arte ritual das “máscaras bambara de cobre cintilante sob o sol”, a
dança dos Dogons, “tão caras a Marcel Griaule e Germaine Dieterlen” e as “cerimônias de culto aos gênios
Songhai que serviriam mais tarde de motivo para numerosos filmes de Jean Rouch” (Verger, 1982a: 82).
Essa estada, como ocorreu com muitas outras, foi pontuada por privações decorrentes de seus poucos
recursos financeiros. Quando não tinha a sorte de conseguir usar suas fotos como moeda de troca, utilizava
seu dinheiro na compra de filmes e outros materiais fotográficos, pagamento de guias, hospedagem e
alimentação. Chegou mesmo a passar fome e adoecer para não abrir mão de fotografar. Esta foi a primeira
de suas viagens entre as muitas que realizaria para a região que se tornaria, junto com o Brasil, fundamental
em sua vida e produção. Em 1936, Pierre Boucher reúne os fotógrafos Eméric Feher, René Zuber, Denise Bellon e Pierre Verger e juntos criam a agência de fotografia Alliance Photo, que se torna uma das mais importantes de Paris. Verger viaja para Londres a serviço do Paris Soir e ali estabelece contato com o Daily Mirror, que compra algumas de suas fotos e lhe oferece um contrato de trabalho que ele recusa, por temer que a fotografia, ao se tornar uma obrigação profissional, perdesse o encanto e o sentido que adquirira em sua vida. Parte para as Antilhas por conta própria, onde conhece, entre outros lugares, a Martinica, Guadalupe e depois segue para Cuba e Santo Domingo, encontrando ali dificuldades para fotografar devido à ditadura de Rafael Trujillo. Destas ilhas parte para o México, onde fotografa testemunhos do passado asteca e a vitalidade das fiestas populares. Retorna a Paris em 1938 e parte, em seguida, para a China, a fim de fazer, para a Alliance Photo, uma reportagem do conflito entre este país e o Japão. Essa viagem foi, para Verger, uma oportunidade de retornar às Filipinas. Em Manila, produziu uma famosa foto, publicada na Life Magazine, de um grupo de habitantes locais, descendentes de antigos caçadores de cabeça, que quando saíam de suas aldeias para a cidade de Baguio vestiam-se “com um chapéu e uma camisa completa e algumas vezes com um par de borzeguins de canos que iam até a metade da barriga da perna, mas, em geral, não usavam nem calções nem calças” (Verger, 1982a: 121). Em seguida, parte para a Indochina onde, na cidade imperial de Hué, fotografa o antigo imperador Bao Dai, cujo poder real fora perdido para a administração francesa. No Laos e no Camboja fotografa a influência da Índia na arquitetura dos templos, nos costumes religiosos e nas artes. Voltando a Paris, é imediatamente convocado pelo exército para servir na Lorraine, devido à iminência da eclosão da Segunda Guerra mundial. Em 27 de setembro de 1938, compra um “metro de costureira”, que na verdade tinha um metro e cinqüenta centímetros, e decide que cortará um milímetro a
cada noite, até chegar o dia de sua morte, prevista para seu aniversário de 4 de novembro de 1942.
“Espalhei aqueles milímetros em três continentes (a Europa, a África e as Américas), os oceanos
Atlântico e Pacífico, os rios afluentes do Amazonas, o lago Titicaca, o Rio de la Plata e a baia da
Guanabara”. (Verger, 1982a: 147). Livre do serviço militar, Verger vai a Roma para fotografar o Vaticano, a serviço da revista Match.
Essa estada, como ocorreu com muitas outras, foi pontuada por privações decorrentes de seus poucos
recursos financeiros. Quando não tinha a sorte de conseguir usar suas fotos como moeda de troca, utilizava
seu dinheiro na compra de filmes e outros materiais fotográficos, pagamento de guias, hospedagem e
alimentação. Chegou mesmo a passar fome e adoecer para não abrir mão de fotografar. Esta foi a primeira
de suas viagens entre as muitas que realizaria para a região que se tornaria, junto com o Brasil, fundamental
em sua vida e produção. Em 1936, Pierre Boucher reúne os fotógrafos Eméric Feher, René Zuber, Denise Bellon e Pierre Verger e juntos criam a agência de fotografia Alliance Photo, que se torna uma das mais importantes de Paris. Verger viaja para Londres a serviço do Paris Soir e ali estabelece contato com o Daily Mirror, que compra algumas de suas fotos e lhe oferece um contrato de trabalho que ele recusa, por temer que a fotografia, ao se tornar uma obrigação profissional, perdesse o encanto e o sentido que adquirira em sua vida. Parte para as Antilhas por conta própria, onde conhece, entre outros lugares, a Martinica, Guadalupe e depois segue para Cuba e Santo Domingo, encontrando ali dificuldades para fotografar devido à ditadura de Rafael Trujillo. Destas ilhas parte para o México, onde fotografa testemunhos do passado asteca e a vitalidade das fiestas populares. Retorna a Paris em 1938 e parte, em seguida, para a China, a fim de fazer, para a Alliance Photo, uma reportagem do conflito entre este país e o Japão. Essa viagem foi, para Verger, uma oportunidade de retornar às Filipinas. Em Manila, produziu uma famosa foto, publicada na Life Magazine, de um grupo de habitantes locais, descendentes de antigos caçadores de cabeça, que quando saíam de suas aldeias para a cidade de Baguio vestiam-se “com um chapéu e uma camisa completa e algumas vezes com um par de borzeguins de canos que iam até a metade da barriga da perna, mas, em geral, não usavam nem calções nem calças” (Verger, 1982a: 121). Em seguida, parte para a Indochina onde, na cidade imperial de Hué, fotografa o antigo imperador Bao Dai, cujo poder real fora perdido para a administração francesa. No Laos e no Camboja fotografa a influência da Índia na arquitetura dos templos, nos costumes religiosos e nas artes. Voltando a Paris, é imediatamente convocado pelo exército para servir na Lorraine, devido à iminência da eclosão da Segunda Guerra mundial. Em 27 de setembro de 1938, compra um “metro de costureira”, que na verdade tinha um metro e cinqüenta centímetros, e decide que cortará um milímetro a
cada noite, até chegar o dia de sua morte, prevista para seu aniversário de 4 de novembro de 1942.
“Espalhei aqueles milímetros em três continentes (a Europa, a África e as Américas), os oceanos
Atlântico e Pacífico, os rios afluentes do Amazonas, o lago Titicaca, o Rio de la Plata e a baia da
Guanabara”. (Verger, 1982a: 147). Livre do serviço militar, Verger vai a Roma para fotografar o Vaticano, a serviço da revista Match.
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