sábado, 16 de outubro de 2010

Fatumbi: O destino de Verger - Continuação 5

 
“Saída do nome”: O nascimento de Fatumbi
 
Verger chegou a Bahia em 5 de agosto de 1946, a bordo do vapor Comandante Capela, que fazia sua
última viagem. No barco conheceu Cid Teixeira, historiador com quem estabeleceria uma amizade que
duraria até o fim de sua vida. Sem saber falar o português, comunicava-se precariamente, por gestos. O
desembarque, pleno da alegria de seus companheiros de bordo, já prenunciava o contentamento que
marcaria a relação amorosa que se estabeleceu entre Verger e a cidade de Salvador. Mais tarde, ele diria:
“Aquele contentamento não era uma ilusão, pois, trinta e seis anos depois, ainda o sinto. O que me tocava
era, em contraste com os anos passados entre os indiferentes índios dos Andes, a cordialidade reencontrada
nas relações humanas” (Verger, 1982a: 239).
Sua primeira residência foi um pequeno quarto de hotel no centro de Salvador. Esse quarto, por sua
vista para a Baía de Todos os Santos e possibilidade de observação da vida cotidiana da cidade, recebeu de
Verger a designação de “o quarto dos meus sonhos”. Nele morou por quatro anos, antes de mudar-se para
um sótão no Caminho Novo do Taboão, ainda nas proximidades do centro. Neste sótão viveu, como sempre,
humildemente, tendo apenas uma cama e pouca mobília. Numa das paredes desse quarto fez um buraco
quadrado, por onde avistava a Cidade Baixa e no qual costumava colocar uma moringa para obter água
refrescada pelo vento. Estabeleceu com seus amigos um código para que soubessem quando estava ou não
em casa. Se avistassem no buraco uma caneca emborcada sobre a moringa, seria o sinal de que ele não
estava ali e que, portanto, não precisariam se dar o trabalho de subir a íngreme e longa escada que dava
acesso ao sótão.
Em Salvador, Verger conquistou novas e sólidas amizades que marcaram sua vida. Entre elas a de
pessoas famosas como o pintor Carybé, o escritor Jorge Amado, o cantor Dorival Caymmi, o escultor Mário
Cravo e a ialorixá Senhora, do candomblé Opô Afonjá. Mas o que realmente o seduziu foi “a presença de
numerosos descendentes de africanos e sua influência sobre a vida cotidiana deste lugar” (Verger, 1982a:
240).
Como fotógrafo da revista O Cruzeiro, Verger cobriu, nos primeiros anos de sua estada na Bahia, as
principais festas religiosas, que o impressionaram por sua beleza e riqueza. Entretanto, seu envolvimento
com o mundo do candomblé não se deu apenas por obrigação profissional, mas pela empatia que se criou
entre sua visão positiva do papel da religião e o próprio candomblé. Freqüentava com assiduidade as
cerimônias de vários terreiros. Em um deles, o Opô Afonjá, foi consagrado a Xangô por mãe Senhora, a fim
de colocar sob bom presságio a viagem que faria em seguida à África. Nessa ocasião, recebeu um colar de
contas, nas cores vermelha e branca, consagrado ao orixá do trovão. Sua convivência com o candomblé, que
lhe ensinou os primeiros passos do culto aos orixás, e esse colar, símbolo de seu pertencimento ao culto de
Xangô, foram providenciais no início de suas pesquisas na África a partir de 1948. Por conhecer os nomes
das divindades cultuadas no Brasil, o modo de saudá-las, suas representações materiais, enfim, alguns
códigos do candomblé, mesmo que superficialmente, sua inserção nos grupos africanos foi facilitada. As fotos
dos cultos brasileiros que ele levou consigo, e exibiu ali, foram outro importante passaporte para o mundo
religioso, pois atestava seu pertencimento ao culto dos orixás no Brasil e as semelhanças deste com as
práticas africanas. Verger conta que, muitas vezes, as semelhanças eram tão grandes, que desconfiavam de
que ele houvesse feito as fotos em aldeias vizinhas.
No Benin, Verger descobre que os nomes das famílias dos voduns cultuados em São Luís, no Brasil,
correspondiam, em grande parte, aos dos voduns conhecidos naquela região. Fica sabendo, também, que
alguns deles eram cultuados por membros das famílias reais do Abomé, o que indicaria a presença de
descendentes destas famílias no Brasil. Em Uidá descobre, ainda, documentos do século XIX sobre o tráfico
clandestino de escravos e o retorno de libertos do Brasil para a África. Esses ex-escravos e seus
descendentes viviam em Uidá e Lagos, em bairros onde mantinham um estilo de vida muito semelhante ao
do Brasil, desde o que diz respeito à arquitetura de suas casas até as festas que realizavam, com músicas
cantadas em português antigo. A descoberta de continuidades entre os cultos brasileiros e africanos aos orixás e voduns estimulou Verger a cruzar inúmeras vezes, nos anos seguintes, as duas margens do Atlântico. Essas viagens foram realizadas, segundo ele, não tanto para realizar pesquisas, mas pelo desejo de satisfazer a curiosidade e de responder às questões de seus amigos brasileiros. Tornou-se, assim, por vontade própria, ou por “desígnio dos orixás”, um “mensageiro”, conforme escreveu, da Bahia, ao seu amigo Métraux em 1950: “Os orixás africanos se mostram imperiosos e exigentes e me forçam a cumprir com consciência o
papel de mensageiro, a correr de terreiro em terreiro falando da África” (Verger & Métraux,
1994:108).
Sua iniciação religiosa na África parece derivar do desejo de aproximar-se das pessoas pelas quais
nutria um profundo sentimento de respeito e amizade, e do desejo de pertencer à cultura africana, se
possível apagando a diferença que o separava dela. Desejava ser negro:
“Mas teve uma vez que não me senti branco. Foi uma festa de Geledé, em plena floresta do atual
Benin. Era uma noite escura, sem lua, e o pessoal bailava ao redor de certas árvores; não tinha luz
nenhuma. Então conheci uma liberdade que não havia conhecido antes. Não era um branco entre
negros. A escuridão da floresta africana apagou a diferença” (Verger, 1990:79).
O âmago do seu processo de aproximação da cultura africana situa-se em 1953. Em Keto, Verger foi
iniciado para Ifá (orixá do destino), e tornou-se babalaô (pai do segredo). Recebeu, então, o nome de
Fatumbi (Renascido por Ifá) que o acompanharia para o resto de sua vida. Assumiu tão completamente a
nova identidade, que passou a assinar suas cartas aos amigos com esse nome e, posteriormente, seus
trabalhos etnográficos como Pierre Fatumbi Verger. Numa carta desse período a Métraux, escreveu:
“Encontrei sua carta na volta de Keto, aonde eu fui como Pierre Verger e de onde retornei como
Fatumbi, o que significa: ‘Ifá me recolocou no mundo’ [...] Rompi, deste modo, as últimas ligações
que tinha ainda com a minha família e não teria mesmo restrição mental a fazer se mais tarde me
ocorresse mentir a um profano e lhe declarar: -‘Não é verdade, eu não me chamo mais Pierre
Verger”. Sabe-se poucos detalhes da iniciação de Verger para Ifá. Em suas cartas e entrevistas, ele sempre
foi muito lacônico, demonstrando que seu compromisso com o segredo não lhe permitia revelar as minúcias
do processo. Em cartas destinadas a Alfred Métraux e Roger Bastide é possível apenas “garimpar” alguns
detalhes deste processo: que recebe o nome de Fatumbi em 28 de março de 1953, às dez horas da manhã,
em Keto; que já aprendera 256 fórmulas das pelo menos 1500 que um babalaô deve ter na memória para
interpretar os desígnios do destino através do jogo de Ifá; que se tornara importante na aldeia desde que
seu oluô (seu iniciador) lhe amarrara um bracelete em seu pulso esquerdo e que estava submetido a um
regime alimentar específico4.
A participação de Verger no mundo místico africano era perceptível por discretos sinais de
comportamento, que os iniciados identificavam. Levava, por exemplo, seu santo na mala sempre que
viajava, não permitia que a jaqueira brotasse em seu jardim, pois atraía as terríveis feiticeiras africanas que
se transformam em pássaros e mantinha um altar de Exu na porta de casa5. Mas afirmava ser um cético.
No Brasil, o reconhecimento pelos terreiros baianos da importância da inserção religiosa que a
atribuição desse nome significava, fez com que Verger recebesse outros nomes e cargos que o identificavam
como dignitário do candomblé. No Opô Afonjá foi escolhido por Xangô como Oju Obá (O olho do Rei), numa
alusão à sua condição de babalaô e de fotógrafo. Por sua importância e conhecimentos, Verger acumularia,
durante a vida, uma longa lista de nomes, títulos e cargos religiosos, recebidos tanto na África como no
Brasil: Xangowumi, Ojê Rindê, Essa Elemexô, Gbeto Windi, Otun Mongbá, Xangô Omo Orô e Ologbonhi,
entre outros.
Nesse período, Verger tornou-se o portador de todo tipo de bens, materiais e simbólicos, entre a
África e o Brasil. Para os brasileiros trazia materiais litúrgicos tidos como importantes fontes de axé (energia
vital) para o culto aos orixás (como folhas, favas, sementes, contas, insígnias), informações sobre os ritos
(fórmulas mágicas, receitas de ebós, orações, encantamentos, cantigas) e, ainda, fotografias, que
revigoraram a auto-estima e o sentimento de pertencimento dos descendentes de escravos a uma cultura
ancestral e livre. Foi portador, por exemplo, do título honorífico de Iyanassô (sacerdotisa do templo de
Xangô) conferido pelo rei de Oyó a mãe Senhora do Opô Afonjá, como reconhecimento das ligações
existentes entre eles. Dos brasileiros para os africanos, Verger levava presentes, cartas, notícias,
informações que surpreendiam os sacerdotes de lá.
“O rei de Ifan ficou tão interessado pela notícia de que se adorava na Bahia Oxalufan, seu orixá
pessoal, e de que seus sacerdotes usavam bastões de metal branco, chamados paxorôs, que me
pediu para trazer dois deles do Brasil, para ele e para o sacerdote principal de Oxalufan. O de Ejigbo
ficou feliz em saber que adoravam seu ancestral Oxaguian e que seus sacerdotes usavam uma mão
de pilão em certas circunstâncias. O Oni de Ifé foi sensível ao fato de que os nomes de seu ancestral
Odudua e de seu adversário Oxalá fossem conhecidos no Brasil [...] Alaqueto deplorou que o culto
de Oxossi tivesse sido esquecido em seu reino enquanto é tão popular no Novo Mundo” (Verger,
1982a: 258).
 
4 Ver Verger & Métraux, 1994 e Lody & Baradel, 2002 nos quais estas informações constam da correspondência de Verger .
5 Ver entrevista de Ceci a Gilberto Gil no Documentário Pierre Fatumbi Verger – Mensageiro entre dois mundos, de 1998.
 

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