sábado, 16 de outubro de 2010

Fatumbi: O destino de Verger - Continuação 1


“Saída da criação ou de branco”: O nascimento na França
Nascido em 4 de novembro de 1902, em Paris, Pierre Édouard Leopold Verger foi criado com dois
irmãos mais velhos numa casa da Avenida Louis Martin. Seu pai, Léopold, era dono de uma tipografia, o que
garantia à família Verger uma boa situação econômica. Freqüentavam, portanto, os círculos sociais e
culturais (exposições, óperas, cafés, salões etc.) reservados aos membros de sua classe, uma burguesia
comercial em ascensão, que se projetava por meio de relações pessoais cuidadosamente selecionadas.
Na adolescência, enfrentou duas grandes perdas familiares: a morte de seu irmão Louis, em 1914, e
a de seu pai, no ano seguinte. Enfrentou, ainda, problemas de adequação na escola. Foi expulso por
indisciplina do Liceu Janson de Sailly, aos 15 anos, e da Escola Bréguet, aos 18, momento em que
abandonou os estudos secundários. Passou, então, a trabalhar na tipografia da família, dirigida por seus tios.
Aos vinte anos, ingressou no serviço militar no regimento de radiotelegrafia. De volta à vida civil, trabalhou
mais alguns anos na tipografia até que ela falisse.
Nos anos 20, Pierre, apesar de tentar levar uma vida semelhante à de seus companheiros de geração
e classe social – que freqüentavam festas, praticavam canoagem, mergulhavam, esquiavam, praticavam o
nudismo, corridas desenfreadas de automóvel pelos arcos da Place Vendome e esportes (seus amigos Pierre
Boucher e o violinista Maurice Baquet contam numa entrevista2, que Pierre era muito desajeitado para isto).
– sente-se desinteressado pelos valores, que considerava superficiais, do meio em que vivia. Parece perceber
que a moderna Paris, que professa a liberdade e congrega movimentos de vanguarda artística e filosófica,
prende-se ao excessivo formalismo das relações, numa classificação dos grupos inflexível e preconceituosa.
Sente-se numa situação ambígua: ao mesmo tempo em que pertence à classe social burguesa, não se sente
um deles. Não apreciava a frivolidade da etiqueta social, que impunha regras como a de selecionar amizades
considerando a profissão que alguém exercia, o dinheiro que tinha, o bairro onde morava ou a roupa que
vestia. Sentia-se um outsider, uma personalidade insatisfeita em meio a uma sociedade rigidamente pautada
pelas regras do “bom tom”.
O que impedia Pierre de abandonar este modo de vida era sua família, especialmente sua mãe, a
quem não desejava impingir a contrariedade dos comentários familiares a seu respeito. A morte de Jean, seu
irmão mais velho, em 1929, e de Marie Verger, sua mãe, em 1932, somadas à falência da tipografia da
família, desfazem os últimos laços que o prendem àquele mundo “decente-e-burguês”.
Nessa época, sozinho e sem recursos, Pierre decide suicidar-se quando completar 40 anos de idade,
por considerar a velhice inaceitável para si. Antes, entretanto, decide viver de forma plena a liberdade de ser
ele mesmo e fazer somente o que lhe parecesse “aceitável”. Numa atitude significativa, de quem percebe
que não basta nascer de alguém para ser alguém; é preciso também nascer de si para si, começa a romper
com o meio em que vive. Assim que termina o período de luto pela morte de sua mãe, abandona seus trajes
sociais, passando a andar descalço e a vestir shorts. Passa a freqüentar com alguns amigos o baile das
Antilhas (onde a gente pobre originária dessa região dançava nos fins de semana), do qual se lembraria por
toda vida como referência para o início de seu amor pela cultura africana. No mesmo período, duas
descobertas foram fundamentais para a realização de seu projeto de liberdade: o prazer da fotografia e o das
viagens.

1 No candomblé, a saída de iaô marca o final do período de recolhimento para a iniciação que significa o renascimento da pessoa em direção ao seu destino revelado por Ifá. Nesta ocasião, o iniciado é apresentado publicamente numa festa cujo desenrolar se dá em quatros momentos designados por: “saída da criação ou de branco” (quando o iaô aparece pela primeira vez como um fruto da criação de Oxalá), “saída de nação” (quando ele se reveste com as cores que identificam o seu grupo religioso), “saída do nome” (quando o orixá grita o seu nome sagrado) e “saída rica” (quando o deus dança com seus majestosos paramentos e vestes, numa apoteótica glorificação da religião, do indivíduo e do grupo). 2 Ver entrevista a Gilberto Gil no Documentário Pierre Fatumbi Verger – Mensageiro entre dois mundos, de 1998.

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