sábado, 16 de outubro de 2010

Fatumbi: O destino de Verger - Continuação 8


insistia e deu-me este ultimatum: ‘Publica!!! Se não, nada de bolsas de pesquisas!!!’” (Verger,
1982a: 257).
Monod disponibilizou uma casa em Gorée, Dakar, para que Verger, “longe das tentações”, escrevesse
seu trabalho. Ali, durante dezoito meses de isolamento, Verger reuniu suas notas, redigindo assim seu
primeiro trabalho sistemático como etnógrafo. Numa carta a Métraux, seu melhor amigo, ele se refere a este
período de organização de uma “pilha de notas de um metro e vinte” como sendo um “calvário”. O intenso
trabalho resultou na publicação, em 1957, do número 51 das Memórias do IFAN intitulado Notas sobre o
culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África.
Uma versão resumida deste trabalho, acompanhada por um conjunto de fotos, foi publicada por Paul
Hartmann, em 1954, sob o título Dieux d’Afrique.
O livro Notas sobre o culto já anunciava a ambigüidade que marcaria a produção etnográfica de
Verger e as dificuldades que enfrentaria na dupla condição de iniciado e etnógrafo. Monod, no prefácio que
escreveu ao livro, reconheceu o imenso valor do levantamento realizado por Verger, embora não se tratasse
de uma obra analítica:
“Entenda-se que P. Verger não tinha a ambição de escrever um livro sistemático e encadeado nos
moldes que se exigem dos candidatos ao doutoramento, por exemplo. Sua proposta era mais
modesta, pois pretendia unicamente uma acumulação eficaz de materiais originais e autênticos.
Cada qual no seu ofício. P. Verger é o minerador paciente, o trabalhador na pedreira, que arrancou
das entranhas da terra essa enorme quantidade de pedras. Chegará o dia em que um arquiteto, com
essas pedras, construirá um edifício. Este, porém, implica aquelas, se for verdade que é imprudente
pegar a casa pelo teto” (Monod apud Verger, 1999:12).
Na introdução a este livro, Verger faz questão de mencionar que as informações ali contidas foram
coletadas com base na confiança que adquiriu entre o povo de santo da Bahia e da África, e que esta
“confiança não fora por ele traída”. Muitos grupos religiosos, entretanto, apesar de reconhecerem a enorme
contribuição de Verger na divulgação da religião, consideraram excessivas algumas informações e fotos
publicadas neste e em outros livros de Verger, sobretudo aquelas que envolvem aspectos de sacrifícios
rituais e fórmulas de malefícios, entre outras.
Neste período, outro acaso levou Verger a estender seu trabalho de pesquisador, agora na área da
historiografia. Encontrou em Uidá uma centena de cartas de um traficante de escravos que se estabelecera
na África, vindo da Bahia. Essas cartas, datadas do século XIX, continham informações sobre o tráfico
clandestino de escravos que possibilitaram a Verger perceber as relações econômicas e culturais que a
escravidão estabelecera entre a Bahia e o Golfo do Benin, na África. O interesse que essas cartas
despertaram em Verger levou-o a recolher, ao longo de dezessete anos, outros documentos relacionados ao
tráfico de escravos. Essa farta documentação foi organizada por ele e apresentada, sob o estímulo do
historiador Fernand Braudel, como tese de doutoramento na École Pratique des Hautes Études da Sorbonne
em 1966, quando Verger tinha a idade de 64 anos. O trabalho foi publicado dois anos depois na França e, no Brasil, em 1987, com o título de Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia deTodos os Santos, dos séculos XVII a XIX. Na introdução que fez à edição brasileira, Verger revela que o que
atraiu o interesse de Braudel por seu trabalho foi justamente a “abordagem não-acadêmica” do tema. O que
pareceu a Monod uma desvantagem ou fraqueza no primeiro trabalho etnográfico de Verger, foi visto por
Braudel como virtude em Fluxo e Refluxo.
O título de doutor atribuído a Verger pela Sorbonne insere-o oficialmente no círculo acadêmico. Em
1971, aos 69 anos de idade, torna-se diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique
(CNRS) de Paris, substituindo seu amigo Gilbert Rouget. Verger ingressara no CNRS três dias antes de
completar 60 anos, idade máxima para aceitação de pesquisadores nesta instituição.
Verger desempenhou importantes atividades em várias instituições acadêmicas na África e no Brasil,
sendo responsável pela criação de pelo menos dois museus: em 1978, o Museu Histórico de Uidá, instalado
num antigo forte português do Benin e, em 1982, o Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, instalado no antigo
prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, onde Nina Rodrigues iniciara, no século XIX, os estudos pioneiros
sobre o candomblé no Brasil. Em ambos organizou acervos representativos da cultura africana no Brasil e
brasileira na África, valorizando as semelhanças e afinidades existentes entre elas.
Em função da organização do Museu Afro-brasileiro de Salvador, iniciada em 1974, tornou-se, nesse
ano, professor-visitante da Universidade Federal da Bahia, cargo que ocupou até 1976, quando foi convidado
pela Universidade de Ifé, na Nigéria, para ser professor-visitante. De volta à Bahia, em 1980, voltou a
ocupar o cargo de professor-visitante na universidade, atribuído a ele em função de sua reconhecida
contribuição aos estudos afro-brasileiros.
Do grande público brasileiro Verger só se tornaria conhecido a partir de 1980 quando, sob a iniciativa
da editora Corrupio, suas obras começaram a ser traduzidas para o português e publicadas. Nesse ano foi
publicado Retratos da Bahia, um ensaio fotográfico com imagens de Salvador, acompanhado do primeiro
texto em que Verger narra sua experiência de encantamento pelo Brasil, desde o momento da chegada até a
adoção completa desta cidade como lugar para onde voltar. Na capa, significativamente, a foto do buraco no
sótão onde viveu exibe a moringa sem a caneca emborcada: sinal que de que ele estava “em casa”.
Em 1982, surge 50 anos de Fotografia, uma espécie de memórias de viagens que fez entre 1932 e
1982. Neste trabalho as fotos em branco e preto são intercaladas por uma narrativa sensível, que permite
entrever sua singular percepção do mundo, revivida através de imagens poéticas filtradas sob o jogo
voluntário de luz e sombra. Neste caso é significativo que os cinqüenta anos da vida que escolheu sejam
efetivamente chamados de 50 anos de fotografia, sublinhando o fato de que para ele viver e fotografar eram
sinônimos.
O primeiro livro etnográfico de Verger e, certamente, o mais famoso, foi publicado em 1981: Orixás,
deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Este livro descreve aspectos rituais da religião dos orixás, no
Brasil e na África, como os ritos de iniciação e formas de culto aos orixás, acompanhado de fotos que
mostram as semelhanças entre os cultos nesses lugares. A forma como Verger organizou essas fotos,
colocando-as lado a lado, e destacando assim as semelhanças entre os modos de culto africano e brasileiro,
foi um dos motivos do sucesso deste livro. Em muitos casos, há uma escolha, aparentemente proposital, de
um ângulo comum ao apertar o disparador, o que cria no observador uma sensação de “série”. Orixás, por
tratar de aspectos fundamentais ao culto como mitos, ritos, arquétipos dos iniciados, imagens dos objetos,
características do panteão etc., muitos deles então esquecidos ou conhecidos apenas em certas
comunidades, forneceu os elementos para um projeto de “reorganização” dos cultos, sobretudo os litúrgicos
e de origem iorubá. Tornou-se uma espécie de cânone ou “livro sagrado”, cujo interesse, por parte de
públicos diversos, vem garantindo suas contínuas reedições.
Em 1981 também foram publicados os livros Oxóssi, o caçador e Lendas dos orixás, que juntamente
com Lendas africanas dos Orixás, de 1985, apresentaram um conjunto de narrativas míticas coletadas por
Verger na África.
Em 1995 seria a vez da publicação da obra de Verger mais aguardada pelo povo de santo. Ewê, o
uso das plantas na sociedade iorubá. Neste livro foram divulgados os resultados das pesquisas realizadas por
Verger, ao longo de mais de quarenta anos, sobre a botânica ritual iorubá. Um pequeno ensaio sobre este
tema fora publicado em 1967, com o título Awon ewê Osanyn - Yoruba Medicinal Leaves, editado pelo
Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ifé, na Nigéria. Considerando a reserva com que o povo de
santo aborda este assunto, parte fundamental do conhecimento tradicional do culto, transmitido oralmente
segundo os critérios de senioridade religiosa, a iniciação de Verger, como babalaô, “facilitou e oficializou”
suas pesquisas nessa área. Até mesmo porque, como ele afirma, nessa condição, obter “conhecimentos do
uso das plantas para preparação de receitas, remédios e ‘trabalhos’ tradicionais constituíram para mim não
somente um direito, mas uma obrigação” (Verger, 1995:16).
A dificuldade de acesso a particularidades do culto e o próprio processo de transmissão lenta de
conhecimentos no candomblé justificam o fato de que somente após muitas décadas de contato com as
comunidades religiosas do Brasil e da África, tendo já alcançado uma idade avançada, é que Verger tenha se
tornado uma autoridade em cultura religiosa iorubá e na influência desta no Brasil.
Se o renascimento como etnógrafo significou o momento em que Verger pôde mostrar-se ao mundo
exibindo, como numa dança do orixá, a riqueza dos conhecimentos e experiências que acumulara ao longo
de sua longa existência, ele também significou a morte lenta dos olhos do fotógrafo sob o ofício quase
tirânico da escrita. A necessidade de buscar explicações ou de organizar cartesianamente o mundo, que para
ele não necessitava desta organização, apresentou-se como um destino do qual, desta vez, como filho de Ifá,
ele preferiu não fugir.
“A partir deste momento [da redação dos primeiros trabalhos etnográficos] eu estava perdido para
a fotografia. Com efeito, fui obrigado a redigir e a tentar compreender as coisas. Minha vida, até
então, era descontraída; não procurava analisar e definir aquilo que via. Eu me abandonava às
minhas impressões e apertava o disparador de minha Rolleiflex de tempos em tempos...” (Verger,
1991a:174)
Nos últimos anos de sua vida havia comprado um pequeno sobrado, pintado de vermelho, cor de
Xangô, no morro do Corrupio, em Salvador, de onde pouco saía. Em 1988, preocupado com o destino de seu

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