sábado, 16 de outubro de 2010

Fatumbi: O destino de Verger - Continuação 3


Em 1939, vai novamente ao México e de lá viaja ao Panamá e ao Equador. Com a eclosão da
Segunda Guerra mundial, Verger apresenta-se ao consulado francês em Quito, sendo designado para o
serviço radiotelegráfico em Dakar, em 19403. Alguns dias depois foi requisitado para o serviço fotográfico do Governo Geral da África Ocidental.
Na África encontra um velho amigo, Bernard Maupoil, que o apresenta a Théodore Monod, do
Instituto Francês da África Negra. Ainda em 1940, é desengajado e parte para a América do Sul. Passa pelo
Brasil onde, naquele momento, as condições políticas não eram favoráveis às atividades de um fotógrafo. O
Departamento de Imprensa e Propaganda do governo de Getúlio Vargas controlava e monopolizava as
informações divulgadas pela imprensa. Segue, então, para Argentina, onde trabalha como colaborador do
jornal Argentina Libre e o Mundo Argentino. Em condições de trabalho difíceis, morando em pequenos
quartos de hotel onde precariamente instalava seu laboratório fotográfico, um novo golpe do acaso permite a
Verger deixar Buenos Aires. Conhece o barão Jean de Ménil e sua esposa que, desejosos de conhecer uma
Buenos Aires diferente daquela dos circuitos aristocráticos, são levados por ele a um passeio pela boêmia da
cidade. Percebendo as dificuldades financeiras de Verger, o barão lhe envia, mais tarde, uma carta com um
cheque, o que lhe permite embarcar, em 1942, para o Peru, que ele considerava um país mais interessante,
para um fotógrafo, do que a cidade de Buenos Aires.
Em Lima consegue um emprego no Museu Nacional, durante um ano e meio, graças aos esforços de
seu diretor, Luis Valcarcel, e de Ernesto More, cujo irmão Verger conhecera em Paris. Fotografava, para o
Museu, aspectos das populações indígenas que habitavam os Andes, ruínas incas e a cultura das fiestas. Para
a realização deste trabalho morou longo período em Cuzco. Foi ali que o momento de sua “morte anunciada”
para as dezoito horas do dia 4 de novembro de 1942, passou, sem que ele se desse conta, enquanto lia,
coincidentemente, A importância de viver, de Lin Yutang.
Dificuldades políticas enfrentadas pelo Museu fizeram com que Verger perdesse seu cargo ali e
buscasse outras fontes de renda. Trabalha, então, como fotógrafo, para uma empresa de extração de
borracha, o que o obriga a embrenhar-se na floresta amazônica do Peru. Em decorrência deste trabalho foi
vitimado pela malária. Trabalha, ainda, para uma empresa mineradora, fazendo fotos de equipamentos e
instalações de minas localizadas nas montanhas. A insalubridade e seu pouco interesse pessoal por estes
trabalhos foram recompensados pelo bom pagamento, que possibilitou sua viagem ao Brasil, passando antes
pela Bolívia.
Verger entra no Brasil por Mato Grosso, de onde viaja até São Paulo. Chama sua atenção o
temperamento doce e afetuoso dos brasileiros, que ele contrasta com o das populações da América
espanhola, de onde acabara de chegar. Em São Paulo encontra Roger Bastide, então professor da
Universidade de São Paulo e que acabara de fazer uma viagem pelo nordeste descrita em Imagens do
Nordeste Místico em Branco e Preto, que o incentiva a conhecer a Bahia pela expressiva afinidade dos cultos religiosos dos negros deste lugar com a África. No Rio de Janeiro, ao levar os cumprimentos de Métraux auma amiga, Verger toma conhecimento de que ela estava escrevendo uma matéria para a revista O Cruzeiro
sobre o Peru e precisava de fotos para ilustrá-la. Essa coincidência, mais uma, permite a Verger contatar a
revista que, sabendo do seu interesse em conhecer a Bahia, contrata-o para uma série de reportagens. Este
trabalho lhe permitiu obter o visto de residência no país.
A estada de Verger na Bahia foi marcada pela sedução imediata. Estabeleceu fortes vínculos de
amizades com personalidades do meio artístico e religioso. Dali viaja para São Luís do Maranhão, onde o
culto aos voduns desperta seu interesse e curiosidade pela semelhança que julga ver com os cultos
africanos. Em seguida vai para Recife, onde conhece os maracatus e o xangô pernambucano.
Algumas fotos que fez destes rituais afro-brasileiros foram enviadas a Théodore Monod, então Diretor
do Instituto Francês da África Negra em Dakar, com a finalidade de obter mais informações sobre sua forma
africana. Monod interessa-se pelo tema e oferece-lhe, então, uma bolsa de estudos para uma pesquisa de
um ano na África. Enquanto prepara sua ida a este continente, Verger ainda acompanha seu amigo Alfred
Métraux à Guiana Holandesa e ao Haiti, onde fotografa os cultos de origem africana levados para estas
regiões pelos escravos.
Na África, Verger se dirige a Abomé, capital do Benin, onde passa vários meses colhendo
informações sobre as famílias dos voduns cultuados na região. Em 1949, com outra bolsa de estudos obtida
por Monod, Verger continua seu trabalho na África.
O interesse que o culto aos orixás desperta em Verger abre uma nova perspectiva de trabalho e
autoconhecimento que o leva atravessar o Atlântico inúmeras vezes, nas próximas três décadas de sua vida,
realizando um extenso trabalho fotográfico e de pesquisa. Torna-se cada vez mais um fotógrafo reconhecido
e faz da fotografia um modo de vida.
A vida de Verger, de fato, quando vista sob a ótica de seu trabalho fotográfico, indica um processo
em que as fotografias se tornam singulares a ponto de servirem de mediação entre ele e o outro e dele
consigo mesmo. Essa singularidade foi o que lhe permitiu viajar por todo o mundo, sem domesticar sua arte
e projetando seu nome entre os dos maiores fotógrafos do século XX, mesmo sem ter essa intenção e a
despeito de sua autodeclarada aversão ao aprimoramento técnico.
O próprio Verger, em alguns trabalhos e entrevistas, em que evitava, como sempre, explicações,
indica que a identidade de sua fotografia, se alguma houver, constrói-se sobre o seu modo de fotografar e de
pensar a fotografia como um processo independente do fotógrafo. Para Verger, fotografar parece ser um ato
em que a liberdade, inclusive a sua própria, era capturada nas paisagens e, sobretudo, nos rostos e corpos
que encontrava no caminho, e nos quais ele se projetava. Em várias fotos é possível perceber a identificação
entre fotógrafo e objeto fotografado: o flagrante de um ciclista solitário pedalando ao fundo de um primeiro
plano feito de pedras ao cair da tarde, a projeção de sua sombra ao fotografar uma janela, sua imagem
segurando a Rolleiflex refletida num espelho (Fundação Pierre Verger, 2002: 32, 10, 203).
A fotografia de Pierre Verger parece realizar-se numa espécie de transe de si mesmo incorporado no
outro, que é quem decide o momento preciso de apertar o disparador. Além disso, para ele, as belas

3 Em 1940, estando no exército, em Dakar, sem meio de comunicação com a França, Verger perde parte dos negativos de seu laboratório da rua Lourmel, que foram vendidos com outros objetos do laboratório para pagar os aluguéis atrasados. Boucher recuperou, mais tarde, uma parte destes negativos. (Verger,1982a).

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